Reportagem | Isa Mestre
Em outubro de 1994, a viver em Paris, havia em casa de Isabel Palmeirim um desafio acrescido: uma bebé de meses que viria a provar-lhe que a maior descoberta ainda estava para vir – compreender como podia ser mãe-investigadora e investigadora-mãe, conjugando, da melhor maneira possível, duas grandes paixões. Entre biberons, fraldas, papas e músicas de embalar, a investigadora decidiu transformar a sua cozinha numa espécie de laboratório oferecendo à sua filha um verdadeiro playground científico. De embriões lavados em casa a pintainhos a passar fins-de-semana em apartamentos, houve um pouco de tudo.
Isabel Palmeirim é investigadora há 28 anos e mãe há 24. Parte da sua vida foi passada a olhar para ovos de galinhas. Foi, aliás, graças a eles que conseguiu demonstrar que as células de um embrião também têm noção da passagem do tempo. Com a descoberta do relógio molecular, a investigadora obteve o reconhecimento da crítica internacional e contribuiu para ajudar a resolver um problema que intrigava cientistas há mais de uma década.
Mas, os ponteiros do relógio de Isabel Palmeirim, não parecem ter parado nesse momento. É que em outubro de 1994, a viver em Paris, havia em casa da investigadora um desafio acrescido: uma bebé de meses que viria a provar-lhe que a maior descoberta ainda estava para vir – compreender como podia ser mãe-investigadora e investigadora-mãe, conjugando, da melhor maneira possível, duas grandes paixões.
A especializar-se, na altura, em Biologia do Desenvolvimento, e a trabalhar no Institute d’Embryologie Cellulaire et Moléculaire, a investigadora conta-nos que o grande desafio passava por ser mãe a tempo inteiro sem, com isso, descurar do trabalho de investigação: “A minha filha tinha, na altura, um ano e meio e eu queria estar como tudo: como cientista, como mãe, e, para isso, fazia uns esquemas atribulados: trabalhava o dia todo, vinha a casa, fazia o jantar, estava com a minha filha, brincava, deitava-a e voltava para o laboratório.”
Entre biberons, fraldas, papas e músicas de embalar, das 24 horas do dia poucas restavam para as muitas tarefas de investigação que se acumulavam no laboratório. Foi então que Isabel Palmeirim, na altura a trabalhar sob supervisão de Nicole le Douarin, que, anos mais tarde, viria a ser candidata ao Nobel da Medicina, decidiu transformar a sua casa numa espécie de laboratório oferecendo à sua filha um verdadeiro playground científico.
Como recorda, muitas das tarefas normalmente executadas no laboratório – como a técnica in situ – uma técnica desenvolvida em três dias e que implica a lavagem diária e rigorosa do embrião – foram diretamente transferidas para a sua cozinha, com um ingrediente especial: a magia de ter um bebé por perto.
Para isso, tudo tinha de ser cronometrado ao minuto. Como rememora Isabel Palmeirim “a minha estratégia era começar a técnica à sexta-feira para depois, no dia seguinte, ir com a minha filha ao laboratório, fazer a lavagem a 70 graus e trazer o embrião para casa”.
Já no conforto do lar, as lavagens, de, no mínimo, uma hora, eram divididas com os afazeres diários da maternidade. No final, como recorda Isabel Palmeirim, “o que é facto é que as minhas in situ ficavam fantásticas e toda a gente me perguntava o que fazia para o conseguir. Na brincadeira, costumava dizer-lhes que era a música dos bebés, a criança a gargalhar ao lado, o ambiente familiar…” [risos].
“A minha filha tinha, na altura, um ano e meio e eu queria estar como tudo: como cientista, como mãe, e, para isso, fazia uns esquemas atribulados: trabalhava o dia todo, vinha a casa, fazia o jantar, estava com a minha filha, brincava, deitava-a e voltava para o laboratório.”
Mas, conjugar a maternidade com o trabalho nem sempre foi uma tarefa fácil. Isabel Palmeirim relembra, particularmente, os dias em que levava a filha e as suas amigas para o laboratório entretendo-as com a ideia de ver “pintainhos bebés dentro do ovo”.
Um desses dias foi especial. Após uma viagem a Portugal, que durou mais que o esperado, ao regressar ao Instituto, a investigadora que, dias antes deixara 12 ovos a incubar, foi chamada por alguém que lhe disse: “há uns pintainhos a nascer com uma etiqueta com o nome Isabel Palmeirim”. A reação foi imediata: “não é possível, esqueci-me dos ovos!”.
O resultado estava à vista: 12 pintainhos num instituto que não tinha condições logísticas para os poder manter vivos. Para a investigadora, a prioridade passava por encontrar uma solução. Então, como conta, falou com a esposa do guarda noturno das instalações e perguntou-lhe se ela os podia levar para o campo.
O pedido foi acedido, porém, havia uma condição: os pintainhos tinham de ter, pelos menos, dois meses.
Diante da exigência, com uma filha pela mão e numerosas tarefas a executar, a atual investigadora do CBMR acedeu: “Pronto, então eu vou tomar conta deles durante os dois meses”. Ao longo desse tempo muitas foram as visitas para alimentar e cuidar dos pequenos seres. No entanto, o momento em que a maternidade e a carreira de Isabel Palmeirim se cruzam e se confundem, estava ainda para vir. Como conta “um dia, a minha filha disse-me que gostava de levar um desses pintainhos para casa. Imaginem só… nós a vivermos num apartamento de 45m2, todo alcatifado, e a miúda a querer-me levar um pinto para casa…”.
Sem conseguir resistir à doçura e à curiosidade da criança, Isabel pensou “é só um fim-de-semana”. Então, pegou na caixa com o pintainho, na ração e seguiu caminho até casa. Ao entrar no prédio, com as mãos ocupadas e diante da necessidade de acender a luz, pousou a caixa no chão. A filha, para a auxiliar na tarefa, decidiu colocar os pés sobre a caixa para chegar ao interruptor da luz e…
Como relembra Isabel Palmeirim, naquela manhã de 1996, de repente, numa zona residencial da capital francesa, “havia um pintainho a voar pelos ares, a ração entornada, e tudo em alvoroço (…) Nisto, aparece um vizinho francês que abre a porta do prédio e me pergunta: ‘o que é isto? Isto é mesmo um pintainho? Está a pensar levar um pintainho para casa???’. Lá tive de explicar a história em 10 minutos mas desconfio que, ainda hoje, tenha ficado etiquetada no prédio como “a senhora que tinha galinhas na banheira”.
Esta é apenas uma das muitas peripécias que Isabel Palmeirim viveu, na primeira pessoa, como investigadora e como mãe, no Institute d’Embryologie Cellulaire et Moléculaire, casa que acolheu, em tempos, entre outros cientistas, figuras de renome como Marie Curie, Nicole le Douarin e Etienne Wolff, um dos primeiros investigadores a trabalhar, nos anos 40, com embriões de galinha.
A vida e a carreira da investigadora do CBMR cruza-se, assim, não apenas com a maternidade, mas confunde-se, igualmente, com a história de uma instituição centenária que lhe ofereceu a oportunidade de fazer a descoberta mais importante da sua vida.
Hoje, investigadora e mãe de três filhos, Isabel Palmeirim carrega consigo um conjunto de boas memórias mas, sobretudo, uma carreira científica que lhe permite, através do estudo do relógio molecular, ajudar a compreender, a partir do processo embrionário, um conjunto de doenças, de entre as quais se destaca o cancro.
Dos tempos de Paris restam algumas fotografias e um caderno cuidadosamente plastificado. O relógio de Isabel não para. Aulas, encontros de trabalho, reuniões. Tem a seu cargo o curso de Medicina da Universidade do Algarve e, em casa, todo um outro “relógio familiar” – levar os filhos à escola, estudar matemática, ciências, inglês, língua portuguesa. Isabel continua a alimentar, diariamente, o desafio que acolheu de braços abertos há 24 anos: ser “mãe” bióloga.