Monday, October 7, 2024
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Reportagem | Isa Mestre

 

Quando chegou à Universidade do Algarve havia pouco mais do que pinheiros e lama. Em 25 anos, Leonor Cancela montou um laboratório do zero, transformou peixes em respostas, dificuldades em soluções, escassez em criatividade e desenvolveu uma linha de investigação única em Portugal que nos permite, hoje, olhar as doenças ósseas através do “espelho” do peixe-zebra.

 

Diz o povo que «a necessidade aguça o engenho». Leonor Cancela é, na Universidade do Algarve, um exemplo disso mesmo. Se, como reza a lenda, a rainha Isabel transformou pão em rosas, bem se poderia dizer desta bióloga molecular que Leonor transformou peixes em respostas, dificuldades em soluções, escassez em criatividade, desenvolvendo uma linha de investigação única em Portugal que permite olhar as doenças ósseas através do peixe-zebra.

 

Para recuperar a história é preciso recuar mais de 20 anos, ao momento em que, após passagens por França e pelos Estados Unidos, onde trabalhara, na área do desenvolvimento ósseo, em instituições de referência, Leonor Cancela ‘aterra’ numa Universidade do Algarve onde parecia haver, praticamente, quase «só pinheiros e lama».

 

«Na altura a Universidade não tinha condições laboratoriais para fazer genética molecular e celular. Quando cheguei não havia nada. Lembro-me que até as pontas para pipetar tinham de ser lavadas. Não havia dinheiro, não havia meios…podia até haver vontade, mas não havia recursos».

À vista, apenas uma solução: «Foi preciso ser criativo», esclarece a atual professora catedrática do Departamento de Ciências Biomédicas e Medicina. «O que havia, na altura, era um Curso de Biologia Marinha e havia peixes». E Leonor, que confessa que, até então, «peixes só no prato», viu na escassez um desafio, e decidiu continuar a perseguir o seu objetivo: olhar para as doenças ósseas, mas, desta vez, usando os peixes como modelo para ampliar horizontes.

 

«Foi preciso dar uma volta à minha investigação. Era preciso aproveitar aquilo que havia». Assim foi. Primeiro tentou perceber se os peixes tinham as mesmas estruturas moleculares dos mamíferos e dos Humanos, depois, constituiu o grupo de investigação em Biologia do Esqueleto e não mais cessou de investigar.

 

Verificou, na altura, aquilo que é, hoje, como explica, comumente aceite pela comunidade científica: a ideia de que os peixes são um bom modelo para estudar algumas doenças como as doenças ósseas, o cancro ou até mesmo as doenças neurológicas. Como esclarece: «Os peixes têm uma estrutura óssea que pode ser muito semelhante à do Ser Humano. Não somos assim tão diferentes».

 

Quando questionada sobre o potencial da utilização do peixe-zebra como modelo biomédico, a investigadora não deixa margem para dúvidas:

«Uma das nossas grandes conquistas foi termos conseguido implementar, em Portugal, o peixe como modelo biológico para patologias ósseas. Era algo que, à partida, parecia não ter ‘pernas para andar’ mas que agora nos começa a abrir horizontes».

Num país em que 2 milhões de portugueses têm mais de 65 anos, o envelhecimento ósseo e doenças como a osteoporose, a doença de Paget, entre outras doenças são, como esclarece a investigadora, «questões a que todos nós estamos sujeitos».

 

No laboratório, onde trabalha com uma equipa de mais de 15 investigadores – entre biológos marinhos, bioquímicos, biofísicos e biólogos moleculares e celulares – utiliza-se o peixe-zebra não apenas para estudar doenças do foro ósseo como também para identificar moléculas que possam ter interesse biotecnológico e biomédico. Falamos, essencialmente, de moléculas que podem vir a ser usadas a nível farmacológico para ajudar nos processos de formação e regeneração do osso.

 

A trabalhar há mais de 30 anos na área da biologia do osso e da cartilagem, a investigadora da Universidade do Algarve acredita que um dos pontos-chave da investigação passa, também, pela disseminação e difusão do trabalho que é feito no interior da academia.

«Se as pessoas tiverem mais consciência dos problemas estão mais aptas a ouvir aquilo que temos para dizer».

Sobre este tema, Leonor Cancela, recorda, particularmente, dois episódios. Um deles, ocorrido em 2008, quando, no decorrer de uma palestra na Biblioteca Municipal de Faro foi abordada por um grupo de polícias que tinham interesse em saber mais sobre o que se podia fazer com as técnicas moleculares; e o outro, ainda nos tempos de liceu da sua filha mais nova, quando foi procurada por um grupo de professores que mostraram interesse e necessidade em ter formação no domínio da biologia molecular.

 

O problema estava a nu e, mais uma vez, a resiliência de Leonor Cancela não a deixou passar indiferente às dificuldades: «Desenvolvemos sessões de formação para os professores do ensino secundário e estudámos com eles a possibilidade dos alunos executarem técnicas básicas de biologia molecular por eles mesmos. Porque uma coisa é verem vídeos, outra, completamente diferente, é serem eles a fazer».

 

Assim nasceu o Lab-It, o primeiro laboratório itinerante do Algarve. Com uma carrinha apetrechada com equipamento científico e uma equipa altamente qualificada, o projeto, iniciado em 2009, fez-se à estrada e, em cinco anos, visitou o Algarve de lés-a-lés, tendo realizado perto de 150 sessões práticas para mais de 2000 alunos do 11º e 12º ano.

 

Apenas 7500Km de um caminho que começou quando Leonor Cancela, na altura com apenas 15 anos, decidiu concorrer a uma bolsa da American Field Service para estudar nos Estados Unidos.

 

Em Portugal vivia-se a ditadura, e a Leonor faltavam-lhe asas para voar. Ganhou-as, em todos os promissores anos que se seguiram. Com passagens pelas Universidades de Washington, Paris VI e Califórnia, começava a desenhar-se o percurso daquela que é, atualmente, uma das investigadoras mais internacionais da Universidade do Algarve. Em Portugal, porém, a realidade era bem diferente. Em 1992, quando regressa, debate-se com o atraso do país relativamente a outras estruturas internacionais:

«Eu vinha de um local onde havia tudo e chego aqui e não havia nada. Não tínhamos sequer um laboratório».

Lembra-se de ter pedido para falar com o reitor da altura e de este lhe ter alocado dois gabinetes. Foram os próprios investigadores que organizaram as obras de remodelação do espaço. Desde substituir chão, a pintar paredes e montar prateleiras, Leonor Cancela e a sua equipa fizeram de tudo um pouco. A bricolage de uma investigação que, como nos conta, «hoje deriva muito daquilo que na altura se implementou e deu frutos».

 

«Quando chegámos não havia azoto líquido, não havia água ultra-destilada. Quando chovia muito a electricidade ia abaixo e lá tínhamos de levar as coisas para casa para que não descongelassem pois nem sequer havia geradores.»

 

Foi um período diferente, confessa. «Hoje em dia as pessoas não têm essa percepção pois as condições de que dispomos são muito semelhantes àquelas que existem nos laboratórios do resto do mundo. Naquela altura não era assim. Era preciso ser criativo e tentar ultrapassar os problemas com todas as dificuldades inerentes».

 

Ainda assim, a carreira de Leonor Cancela fala por si. Desenvolveu as primeiras linhas celulares derivadas de osso de peixe, semelhantes às humanas e de mamíferos, e inscreveu o seu nome na página dourada do genoma humano, ao identificar um gene e a sua localização específica no interior do nosso código genético. Pelo meio, criou algumas das matrizes que hoje se encontram nos maiores bancos de células europeus e ajudou a identificar moléculas ‘anti-terrorismo’, capazes de funcionar contra armas químicas.

 

Mas, a sua maior conquista, diz, vai além do trabalho desenvolvido no laboratório:

«Sinto que consegui formar pessoas eticamente corretas e honestas, capazes de tomar as rédeas da investigação e criar resultados, criar coisas novas. Quando eu sair, aquilo que eu fiz, fica. Fica porque é feito e continuado por outros. Não morre ali.»

« (…) porque tudo o que consegui não o fiz sozinha, para isso contribuíram os alunos e investigadores que colaboraram comigo ao longo destes anos, em particular aqueles que me acompanham ainda e que são actualmente responsáveis por continuar e expandir aquilo que conseguimos até agora em conjunto. Tenho muito orgulho neles.»

 

Com os seus estudantes confessa ter uma relação muito especial: «eles sabem que a minha porta está sempre aberta, podem bater a qualquer hora.». Desde receber SMS’s a meio da noite ou no fim-de-semana, até ajudar em assuntos do foro pessoal, Leonor Cancela, mantém apenas uma certeza: «nós não estamos ali só para lhes dar aquelas aulas e depois acabou. Somos mais que isso».

 

Da carreira da investigadora bem se poderia dizer que foi sempre mais do que isso, mais do que aquilo que lhe foi dado a conhecer. Antes da Ciência, estudava e trabalhava em simultâneo. Passou por uma cafetaria, serviu às mesas, tomou conta de pessoas idosas, preparou dosagens para o Hospital.

 

Hoje, lidera, no Centro de Ciências do Mar (CCMAR), um dos grandes grupos de investigação em Portugal. Não transformou pão em rosas. Mas das suas mãos nasceram ‘pequenos milagres’ científicos que contribuem actualmente para olhar as doenças ósseas a partir de uma nova perspetiva. Com guelras e barbatanas, e um percurso feito de muitas ‘espinhas’ pelo caminho, Leonor Cancela e os seus colaboradores fizeram dos peixes lupas de ampliar futuro. Viu aqui, executou além. Construiu do zero uma investigação que pode hoje abrir-nos novas pistas sobre a evolução do osso e da cartilagem e das suas implicações no aparecimento de adaptações esqueléticas em função do stress e das condições ambientais.

Leonor Cancela é Professora Catedrática na Universidade do Algarve e investigadora no Centro de Investigação em Ciências do Mar (CCMAR/Universidade do Algarve).

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