Reportagem | Isa Mestre
Numa altura em que a África do Sul é afetada por um dos maiores surtos de sempre de listeriose, uma doença provocada por uma bactéria que contamina os alimentos e se camufla no seu interior para entrar no organismo do Ser Humano, conheça a história da cientista que há vinte anos decidiu estudar um dos microrganismos mais perigosos de todos os tempos – a Listeria monocytogenes. Eis a história de Leonor Faleiro, a caçadora de bactérias que, em 2016, iniciou um estudo pioneiro sobre a relação entre o nosso intestino e o desenvolvimento de determinadas doenças, como a diabetes.
Em janeiro de 2018 o mundo acordava com a notícia de mais de 70 mortes, na África do Sul, por listeriose, uma infecção bacteriana grave provocada pela Listeria monocytogenes, uma bactéria que sobrevive à exposição ao meio externo e contamina os alimentos, camuflando-se no seu interior para, a partir deles, invadir o organismo do Ser Humano. O surto da infeção, que deixou a comunidade mundial sob alerta, é já considerado o maior e mais mortífero de sempre.
Para Leonor Faleiro, no entanto, a bactéria já não era uma novidade. Há dezassete anos atrás, e no âmbito do seu doutoramento em Microbiologia, começara a estudar, na Universidade do Algarve, aquela que considera ser a sua “bactéria de eleição”.
Tendo começado o percurso académico em microbiologia do solo, a investigadora cedo percebeu que era nos alimentos que se encontrava o grande desafio. Era preciso compreender o que se escondia por detrás da sua composição, que segredos podiam os microrganismos revelar-nos sobre a nossa própria saúde.
Foi assim que, fascinada pela capacidade de sobrevivência e adaptação da bactéria L. monocytogenes – uma bactéria que afeta principalmente idosos, grávidas, recém-nascidos e pessoas com o sistema imunitário comprometido – começa a estudar este microrganismo a fim de compreender “como é que ela se adapta, como é que esta bactéria consegue ser inteligente ao ponto de conseguir arranjar estratégias para sobreviver em condições nas quais não é suposto sobreviver”.
Como nos conta Leonor Faleiro, esta bactéria, cuja taxa de letalidade para o Ser Humano pode rondar 20% a 30%, tem a incrível capacidade de se manter viva no meio externo, retirando dele toda a ‘experiência’ possível para que, quando entra no hospedeiro, consiga ultrapassar todas as suas barreiras de defesa.
Trata-se, como esclarece, de “uma bactéria que já vem preparada para enfrentar aquele desafio”. Para o Ser Humano, as consequências podem ser devastadoras – “afeta sobretudo o fígado e o baço e, em casos graves, pode passar para o cérebro, provocando meningites e conseguindo, no caso das mulheres grávidas, ultrapassar a placenta e provocar a morte do feto”.
O trabalho de Leonor Faleiro passa por compreender, através dos alimentos, como é que a Listeria se adapta e que mecanismos usa para sobreviver para, que, por fim, se consiga chegar à conclusão sobre a forma de controlá-la: quer no ambiente, quer através de estratégias que impeçam a sua sobrevivência.
A docente, a desenvolver carreira no Centro de Investigação em Biomedicina, procura, assim, compreender a história desta bactéria, estudando o tipo de alimentos contaminados e tentando traçar um perfil evolutivo.
Para já, fica uma certeza. Como avança Leonor Faleiro, “por aquilo que temos conseguido perceber desde 1982, os alimentos contaminados vão sendo muito diferentes. Inicialmente a bactéria surge, sobretudo, em queijos, mas, nos últimos tempos, têm surgido casos com leite achocolatado, patés gourmet, mariscos e fruta”.
“É necessário estar sempre alerta. Nunca podemos dizer que temos a situação controlada. Temos de estar sempre vigilantes”.
Como nos adianta a microbióloga, sentido de oportunidade é coisa que não falta a esta bactéria que, em 2011, colocou em sobressalto a comunidade mundial ao contaminar uma grande quantidade de meloa cantaloupe, uma das mais vendidas e distribuídas em supermercados de todo o mundo.
“O que aconteceu foi que os donos da empresa que produz a cantaloupe, uma meloa de produção familiar, adquiriram uma máquina de lavagem que vinha de um local de lavagem de batatas. Ora, como as batatas estavam contaminadas, e como houve áreas do equipamento onde a bactéria conseguiu sobreviver – ficando aderente à superfície – o que sucedeu foi que, todas as meloas que passaram por aquela máquina, foram contaminadas”.
A bactéria multiplicou-se e deu origem a um dos grandes focos de listeriose que hoje conhecemos.
Porém, a carreira de Leonor Faleiro não se resume aquela que define como uma bactéria de “tolerância zero”. Na verdade, ela é apenas parte do percurso que a conduz aquela que é hoje a sua grande investigação – a ligação entre alguns microrganismos e o desenvolvimento de determinadas doenças, como é o caso da diabetes.
Como explica a investigadora:
“No meu caso quis perceber o que se passava com a diabetes tipo 1. Sabemos que é uma doença com uma carga genética muito elevada, mas comecei a perguntar-me que papel poderiam ter os microrganismos nisso?”
Foi nesse sentido, e tendo observado que as crianças que desenvolviam a doença apresentavam um desequilibro na microbiota gastrointestinal (também conhecida como flora intestinal), que a investigadora do CBMR quis perceber melhor o fenómeno.
Assim, partindo de dados que mostram que grande parte das crianças diabéticas finlandesas são portadoras da bactéria Bacteroides dorei, uma bactéria que se aloja no sistema intestinal, a investigadora está agora a tentar compreender, a partir do isolamento desta bactéria, de que modo as suas características se distinguem das características do microrganismo em crianças que não apresentam a doença.
“Verificámos que antes da criança desenvolver diabetes tipo 1, a população desta bactéria aumentava significativamente. E foi isso que nos chamou a atenção. Hoje acreditamos que podemos ter aqui alguma contribuição desta bactéria não apenas para o despoletar da doença como para a sua manutenção”.
Mas, se o objetivo é claro – compreender a relação entre a bactéria e o desenvolvimento da diabetes e, a partir daí, explorar estratégias que permitam melhorar a microbiota intestinal por forma a impedir o seu aparecimento – a especialista garante que o caminho é ainda longo – “É preciso compreender como é que a bactéria se comporta, o que contribui para que isto aconteça. Há muitas questões ainda por responder”.
Para já, a prioridade passa por analisar a comunidade de crianças diabéticas com Bacteroides dorei. “É preciso perceber que comunidade é esta, se é igual de país para país, de continente para continente. Acreditamos que há muitos fatores em jogo, nomeadamente as influências do ambiente, do estilo de vida, da alimentação.”
Como esclarece, a análise que tem sido levada a cabo revela que “há regiões muito semelhantes e outras muito diferentes, e isso, nada tem que ver com proximidade geográfica. As crianças diabéticas da Finlândia e da Suécia, países vizinhos, não são semelhantes. No entanto, as crianças diabéticas finlandesas apresentam pontos de contacto com crianças de determinadas regiões do Estados Unidos”.
A confirmar-se as suspeitas de Leonor Faleiro, o estudo iniciado em 2016, em parceria com a Universidade da Florida, pode mesmo vir a comprovar uma relação entre a diabetes e o intestino, provando que, como sugere a investigadora, são precisos redobrados cuidados com a alimentação pois esta “é a forma mais significativa de modular a nossa microbiota”.
“As pessoas não se apercebem do impacto do intestino nas nossas vidas. Só vemos que aquilo é horroroso. Mas não nos damos conta de que tudo passa por ali. Somos o que comemos e os microrganismos são também o que nós comemos. A forma como os alimentamos tem um impacto benéfico ou maléfico em nós”.
Garantindo ser possível educar o nosso organismo, sobretudo através da alimentação, Leonor Faleiro, que, em 1984, se licenciou em Agronomia, na Rússia, acredita que “a forma como o nosso corpo está hoje exposto às bactérias é muito diferente e isso, de certo modo, enfraqueceu o nosso sistema imunitário.”
Como afirma a especialista “estamos tão obcecados com a limpeza que acabamos por eliminar o que nos protege. Estamos cada vez menos expostos e quando acontece alguma coisa diferente o nosso sistema imunitário não está preparado para reagir”.
Para a investigadora, que há 34 anos decidiu sair de Portugal para abraçar uma nova realidade na Rússia, a aventura da descoberta continua a ser foco de fascínio. Foi aliás, em busca dele que, como nos conta, com apenas 18 anos, fez uma viagem de 36 horas acompanhada por um colega paquistanês que viria a estudar no mesmo Instituto.
Para trás ficava um Portugal instável, com um ensino periclitante, marcado por altos e baixos, e com “muita coisa a mudar ao mesmo tempo”.
A surpresa viria a seguir. Num país diferente, com uma língua desconhecida, Leonor Faleiro confessa que, no primeiro ano, “tudo foi novidade, tudo me despertou a atenção, a curiosidade”.
Em apenas três meses aprendeu a falar russo. “Se queria comprar pão, leite, ovos…tinha de falar a língua. Sobretudo porque as pessoas não entendem o inglês”.
Os três meses rapidamente se converteram em cinco anos e meio que ofereceram à investigadora uma das experiências mais gratificantes da sua vida académica. A possibilidade de contactar com um “ensino clássico e tradicional, onde impera o método” e no qual existe “uma cultura muito grande”, foram a maior recompensa do tempo passado em terras soviéticas.
Do povo fica-lhe a imagem de hospitalidade que ainda hoje guarda. “São pessoas muito acolhedoras e muito cultas. Um russo é capaz de nos falar até da História de Portugal”.
À distância, e dos tempos vividos, ficam as memórias e a bagagem teórica oferecidos pelo Instituto Superior de Agronomia de Kuban.
Hoje, a carreira de Leonor Faleiro, que em 2016 venceu o Prémio Maratona da Saúde para um projeto de investigação em diabetes, passa por outras paragens. Na Universidade do Algarve, onde ensina Microbiologia, continua a “caçar bactérias” para perseguir, à beira-mar, o sonho de compreender como podem os microrganismos revelar-nos ‘verdades escondidas’ sobre algumas das mais importantes doenças do século XXI.