Reportagem | Isa Mestre
Paulo Martel constrói modelos 3D de proteínas no computador que poderão vir a tornar os medicamentos do futuro ainda mais eficazes.
Sentado ao computador, Paulo Martel desenha moléculas, simula proteínas, constrói modelos 3D e sonha perceber, em detalhe, e com cada vez mais precisão, como funcionam as nossas ‘máquinas moleculares’. Mas o desejo de compreender os mecanismos que tornam possível a vida humana não nasceu na Universidade do Algarve, vem, porém, de muito mais longe.
Tudo começou aos 14 anos, quando, ainda no liceu, lhe ofereceram uma calculadora programável. O que, para qualquer miúdo da sua idade, poderia ter sido apenas mais um objeto de recurso à aprendizagem, tornou-se, para Paulo, um desafio.
“Aprendi a programar com aquela calculadora. Achei aquilo fascinante mas, na altura, a programação era, para mim, um jogo, uma coisa que não tinha relação com nada. Eu ainda não percebia a relação daquilo com o mundo e com os meus outros interesses”.
A revelação veio mais tarde. Após a licenciatura em Bioquímica, na Universidade de Lisboa, começou a dar aulas de programação como monitor e integrou o Instituto de Física e Matemática, onde começou a aplicar métodos computacionais aos processos bioquímicos.
Hoje, confessa-nos que “sempre que alguém está a tentar perceber um mecanismo molecular de determinada proteína”, a probabilidade de lhe vir bater à porta, em busca da ajuda de ferramentas computacionais, é muito grande.
Como nos explica, a simulação molecular vai muito além de “desenhar uns bonecos giros no computador”.
O trabalho de investigação desenvolvido pelo cientista do Centro de Investigação em Biomedicina, estende-se para lá dos zeros e uns e dos bits e bytes que, diariamente, lhe passam diante do olhar: “O meu trabalho pode contribuir para ajudar a desenhar um novo fármaco”
Isto, porque, atualmente, a simulação computacional em 3D permite, como adianta, desenhar novas moléculas e estudar as suas propriedades sem ser preciso ir para o laboratório. “Em termos de tratamento, esta técnica pode permitir-nos perceber quais as moléculas pequenas – fármacos ou potenciais fármacos – que têm características adequadas à interação com um determinado mecanismo do nosso organismo”.
Se imaginarmos que, para um determinado estudo, os investigadores podem ter de testar mais de um milhão de possíveis moléculas, torna-se fácil compreender a importância do trabalho de Paulo Martel que, ao computador, e através de técnicas digitais que permitem estudar e prever o comportamento das moléculas quase em tempo real, consegue filtrar com uma espécie de “funil computacional” as que maior potencial apresentam.
A técnica permite não apenas poupar tempo, mas, sobretudo, facilitar a tarefa dos investigadores que têm a oportunidade de ver no computador o efeito de operar determinadas modificações sobre a molécula ou, até mesmo, compreender determinados detalhes relevantes no seu funcionamento.
Como explica Paulo Martel, este é o tipo de trabalho que pode “ajudar-nos a compreendermo-nos melhor enquanto espécie, a compreender a relação entre a nossa espécie e as outras, a perceber como funcionam os organismos mais simples, os vírus, etc.”.
Se, como afirma o investigador, “as proteínas estão presentes em tudo e tornam possíveis todas as nossas capacidades”, o foco é apenas um: construir ferramentas e teoria para as compreendermos de modo mais detalhado.
Este é o tipo de trabalho que pode “ajudar-nos a compreendermo-nos melhor enquanto espécie, a compreender a relação entre a nossa espécie e as outras, a perceber como funcionam os organismos mais simples, os vírus, etc”.
“Isto é um bocadinho como aquelas séries policiais, do género CSI, onde eles têm uma fotografia desfocada do suspeito, captada por uma câmara de video-vigilância, e não conseguem ver nada…Metem aquilo no computador e, passado duas horas, o computador limpou aquela informação e permitiu ver com mais clareza”.
O mesmo acontece aqui. Tal como o astrónomo que estuda o movimento dos planetas tornando possível, através desse conhecimento, feitos históricos como a ida à lua, também o trabalho de cientistas como Paulo Martel, no campo da modelação molecular, parece ter consequências muito mais amplas do que seria de prever à partida.
Sobre o impacto da modelação molecular no mundo atual, o investigador é inequívoco:
“A descoberta da estrutura do ADN foi conseguida à custa desta técnica. Na época tínhamos informação experimental mas que não era suficiente. O uso de modelos moleculares foi essencial para compreender a estrutura”.
Do ADN aos medicamentos para o HIV, as vantagens de colocar a tecnologia digital ao serviço da saúde pública parecem estar longe de esgotar-se.
“Imagine que temos uma molécula ou um fármaco que sabemos que é eficaz na resolução ou na mitigação de uma determinada doença. Sabemos que esse fármaco é eficaz e sabemos qual o alvo no organismo – qual a proteína com que vai interagir. Se conhecermos, estruturalmente, a molécula e a proteína, podemos servir-nos das técnicas computacionais para perceber de que modo interagem e, graças a esse conhecimento, operar modificações no fármaco por forma a torná-lo mais eficaz”.
No entanto, esta é apenas uma das possíveis aplicações da técnica que, em 1998, e depois de ter passado pela Dinamarca e pela Noruega, trouxe Paulo Martel até à Universidade do Algarve.
É neste espaço que tem vindo a desenvolver investigação, liderando, no CBMR, o Laboratório de Simulação Biomolecular e participando em diversos projetos nacionais e internacionais de grande dimensão.
O mais recente é fruto de uma parceria com Leonor Cancela, investigadora a trabalhar na área das ciências biomédicas, e que se encontra, atualmente, a desenvolver um estudo sobre o osso e a cartilagem nos vertebrados. Paulo Martel ficou encarregue da parte do funcionamento das proteínas e acredita que compreender melhor “o que se passa ali”, pode ser extremamente relevante para ajudar a prevenir doenças como a osteoporose e outras doenças ósseas.
Numa era em que, como afirma,“há cada vez mais soluções engarrafadas para fazer as coisas”, Paulo Martel confessa-se apreciador das soluções personalizadas. Acredita no enorme potencial da tecnologia mas deixa um alerta “Usar estes programas como uma ‘caixa preta’ leva, frequentemente, a situações de total disparate em termos de resultados científicos. Não podemos chegar a um ponto em que as pessoas deixam completamente de compreender o fundamento teórico das ferramentas computacionais que usam”.
As contas da vida de Paulo Martel, essas, parecem ter sido sempre calculadas quase ao milímetro. Desde que, aos 11 anos, lhe ofereçeram o livro A química da vida, que a sua curiosidade pelo mundo jamais esfriou.
“Sempre fui uma pessoa muito curiosa. Queria perceber tudo, queria ler tudo, fascinava-me com tudo. O meu problema foi sempre decidir o que ia fazer”. Confessa-nos, aliás, que ainda hoje o é. Com propostas para trabalhar nos Estados Unidos e em Tóquio, Paulo Martel, conta-nos que a paixão por uma forma de pensamento mais teórica selou o seu destino.
Filho de um professor de História e de Filosofia, sempre sentiu que tinha uma “inclinação tremenda” para esta área:
“Tive a sorte de ter pais que, embora fossem de letras, tiveram sempre vontade de encorajar os interesses dos filhos. Nunca me quiseram puxar para a área deles”.
Paulo tornou-se bioquímico, o irmão, engenheiro, e o primo, que lhe explicou pela primeira vez a teoria da relatividade, é hoje físico teórico.
O encanto pelas ciências marcou a vida que hoje vive, no entanto, reconhece que o caminho nem sempre foi fácil: “Quando voltei para Portugal as pessoas tinham alguma dificuldade em perceber o que é que nós fazíamos”.
Recorda-se, particularmente, do primeiro projeto a que concorreu à procura de financiamento pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT): “No projeto tínhamos previsto grande parte do orçamento para comprar computadores. As pessoas refilavam connosco porque diziam que estávamos a gastar demasiado dinheiro neste tipo de equipamento…Achavam que os estávamos a comprar para a família, para o escritório…Não percebiam que o nosso trabalho era em simulação computacional e que estas máquinas eram a base disso”.
Cálculos, possibilidades, simulações, estruturas. Pelas mãos de Paulo Martel passaram, ao longo de mais de 20 anos de carreira, muitos números. O que não podia calcular, na altura, era que a Noruega lhe ofereceria um dos episódios mais caricatos que viveu.
“A primeira vez que apanhei um autocarro na Noruega, estava na paragem, com o chão completamente gelado, e vejo o autocarro a vir e a começar a parar cedo demais. Lembro-me de pensar que me tinha enganado no sítio da paragem, que o autocarro ia parar muito antes. Só depois de dei conta de que o autocarro vinha a deslizar no gelo cinco ou seis metros até parar mesmo à nossa frente. A vida na Noruega era assim”.
Em Portugal, o autocarro da bioquímica estrutural, da bioinformática e do desenho computacional de fármacos, parou no sítio certo. No banco da frente estava Paulo Martel. Às costas trazia um computador e milhares de proteínas tridimensionais que prometem revolucionar o futuro da biomedicina.